A loja era antiga e cansada. Muito tempo havia se passado e ela continuava lá. Chamava-se assim: “A Loja”, era o suficiente. Trazia consigo a sabedoria da idade e a personalidade múltilha dos que por ela passaram deixando sua marca. Eu sabia disso, pois já conhecia esse lugar, mesmo sem nunca ter vindo aqui antes.
Foi-me advertido, em sonho, para nunca me aproximar. Não pude resistir quando a vi de longe. Luzes artificiais refletiam na porta e chamavam minha atenção para aquela palavra tão perigosa: aberto.
Uma palavra apenas e eu estava perdida.
Um pequeno sino tocou quando ela abriu a porta.
Olhos cautelosos varreram o lugar. Passos lentos acompanhavam aquele olhar. Pareceu por um segundo ter uma luz de conhecimento apagada, no entanto, pelas trevas de seguinte confusão. Parou, observou as estantes reconhecendo nos codex antigos talvez uma tábua de salvação, mais próxima de sua realidade.
“Boa noite”, disse, “vim à procura de um livro”.
O silêncio a atendeu no lugar de qualquer vendedor e ela pareceu satisfeita pois seguiu as estantes cada vez mais para dentro. Bobagem procurar um livro. O livro é quem acha. Ao livro as pessoas pertencem, não o contrário. Mas ela se perdeu pelos corredores infindáveis daquelas páginas que a levavam por caminhos que nem eu sabia onde iriam dar.
Agora não importa. O cenário ainda não está completo.
Fui aprisionado por aquela porta.
Ao seguir pelo caminho conhecido, jamais esperei que um reflexo tão básico me aprisionaria daquela forma. Básico, eis aí uma palavra controversa. Não por ser simples, longe disso, era porque um reflexo numa porta de vidro é um princípio, o início de uma jornada por um mundo de possibilidades.
Fui tragado em completa confusão para dentro daquele lugar, sem chances de resistência ou de fuga.
O sino anunciou a entrada do outro.
O brilho em seus olhos mostrava completo fascínio pela visão que tinha, ele era um prisioneiro. Aquele brilho, aquele olhar de sede, me mostraram que ele era um joguete de seus desejos. Vislumbrando cada reflexo ele ia de espelho em espelho sendo tragado por aqueles corredores enquanto andava, sem saber, em direção de seu destino.
Tal qual espectro eu vagava pelos corredores daquela loja. Não pude evitar. Ao abrir a porta encontrei a única pessoa que jamais esperei ver: eu. Estava lá, dentro do espelho à me mirar. De quem foi a idéia de colocar um espelho em frente à porte? Depois, nada me restou se não seguir cada espelho que se refletia no anterior formando um labirinto impossível. A estrada não me pertencia - nunca pertence! -, mas eu segui por ela buscando espelhos.
De estante em estante ela vagou a procurar seu livro. Palavras, frases, idéias, mundos. Espelhos o levavam como ondas por aqueles corredores. Em busca de si ele mergulhava cada vez mais fundo. Seus dedos tamborilavam nas lombadas década exemplar marcando o compasso e seu coração cada vez mais veloz. Ela se aproximava. Palavra, letra, som, idéia. Ele agora corria por aquele labirinto interminável carregando em seu coração o ritmo conhecido apenas pelos loucos ou as crianças, conhecedoras que são dos mistérios indecifráveis da alma. Íntimas do impossível. O mundo que gira pára de girar. Os relógios não mais seguem seu caminho. Tudo cessou, pois ela encontrou o livro.
Conseguia ouvir apenas o som de meu coração agora. Parecia um louco em plena fuga. Tirei o livro de seu lugar, não importava onde estava, tudo teria resposta, pois o havia encontrado enfim. Afastei-o um pouco de mim, teria agora a dimensão de todo o seu poder e sabia disso, saberia finalmente a verdade jamais revelada em sonho ou realidade. Delicadamente acariciei a lateral e me preparei para o vislumbre da primeira página. Meu coração agora estava descompassado. Aquele barulho era ensurdecedor, eu estava ficando louca com a expectativa, mas, de repente, ele parou. O som cessou, mas meu coração continuava a bater, eu sentia.
Eu esperava por nada e por qualquer coisa, mas não para o que me foi apresentado, nunca. Era um reflexo. Meu reflexo. Mesmo sorriso de excitação, mesmos cabelos de fugitiva, mesmos olhos de expectativa. Era eu, todo esse tempo a resposta era eu. Pensei sobre isso decepcionada até que o senti. Não estava mais sozinha naquele lugar. Agora sabia quem era responsável por aquele som dos infernos que estava a me assombra. Eram seus passos. Sabia que ele estava bem atrás de mim e pensei, ainda, em fugir, mas já era tarde. Através do espelho, eu o vi mirando aquela página. Parecia perdido, encantado, seduzido por aquele livro sinistro que até então seduzira a mim.
Naquele momento eu soube que estava livre.
O feitiço agora havia pego outro e eu poderia ir, naquele momento, só naquele momento. Mas aí eu olhei para aqueles olhos e o mar me atingiu, senti-me encharcada naquelas águas perversas. Cada onda me arrastando para aquele abismo eterno enquanto eu, pobre náufraga, nadava furiosamente em busca das margens. E eu achei que iria conseguir até que a sentença foi selada. Ele, através daquele espelho, olhou para mim.
Não havia mais volta. O destino se cumprira, a resposta fora dada, tudo estava acabado.
Camila Sâmia
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